Trata-se de uma mistura de abismos. Mesmo porque, quando se trata de amor, o ‘pandêmico’ torna-se uma faca de dois gumes. Uma ‘pandemia de amor’ seria bem-vinda, ‘amores pandêmicos’, talvez não. E eis a linguagem por excelência do amor: os símbolos.

 Ok, relacionamentos abusivos – não só entre casais – não é nenhuma novidade. Tão pouco o fato de que a quarentena, ao ‘forçar’ maior tempo juntos e isolados, ou sozinhos e isolados, potencializou muita coisa por aí, dentro das pessoas. Amores nascidos da internet, um amigo(a) que virou amor, desconhecidos que passaram a quase que ‘morar juntos’. Inúmeros foram os casos que deram certo, e os que não. Aqui, quero falar dos que deram errado. Conheço, bem de perto, vários casos. Se houvesse um médico especialista nessa nova disfunção do coração ele diria: Cuidado… as sequelas de um amor pandêmico te deixam sequelado(a). E aí? Freud explica?

Se liga agora em um parênteses importante, há dois símbolos da mitologia grega que precisamos resgatar antes de convidarmos Freud para essa conversa, tratam-se de duas divindades: um carinha meio nebuloso, chamado Thanatos, e um outro chapa, cheio das graças, chamado Eros.

Pois bem, Thanatos, também referido como Tânatos, era a personificação da morte. Conhecido por ter o coração de ferro e as entranhas de bronze, Tânatos era filho de Nix, a noite desse mundo, e Érebo, a noite eterna do Hades. E Eros, é um carinha meio pop, que se diz entendor do amor mas anda armado (o figura das flechas, codinome Cupido, que se apaioxa pela Psique e dá tudo errado), é o deus da paixão, do amor e do erotismo. Eros é pulsão de vida e divide o mundo com a pulsão de morte, o Tânatos. Na tensão entre elas segue o homem com o objetivo de ser feliz. Fecha parênteses.

Sigmund Freud se apropria dos nomes de Eros e Thanatos para exemplificar as ‘Teorias das Pulsões’, que explica a formação psíquica de todos os indivíduos.  Na teoria Freudiana, Eros e Thanatos correspondem ao desejo erótico e a atração pela morte, coexistindo simultaneamente. O propósito de Eros é reunir indivíduos em uma grande unidade, diz Freud, e para tal, os homens devem estar interligados libidinalmente. A pulsão de vida equivale a toda a demanda interna que nos leva a buscar o prazer, a criar sonhos e propósitos, a realizar projetos, enquanto a pulsão de morte obedece à demanda que nos conduz à busca pelo isolamento, por qualquer tipo de estagnação e pelos atos de destruição e morte – que pode ser a morte de inúmeras coisas e não coisas, como a morte de alguma fase ou valores.

Nesta perspectiva, os princípios do prazer e o de morte ficam o tempo todo tentando atenuar sua pulsão contrária. Aí… a pulsão de vida, ao agir atenuando situações dolorosas, às vezes, nos faz ancorarmos no amor ou em um relacionamento, a salvação de uma fase ruim, nos aprisionando a uma dependência emocional, psíquica e as vezes até física. E haja confusão nesses campos durante a pandemia.

 “Psicologia de um vencido”, de Augusto dos Anjos, é um bom poema para exemplificar esse sentimento vivo que permeia nosso interior, a gente sabendo-o ou não. Dá para sentir claramente em sua escrita o pessimismo e a angústia que nos transportam para um lugar de observância das misérias humanas, das incertezas, dos valores efêmeros que nos aprisionam, os traços melancólicos existentes nesse poema evocam a pulsão de morte, descrita por Freud.

Pelas lentes da pandemia, o amor em tempos de riscos profundos, aproximaram Eros e Thanatos. Essas duas esferas, da vida e da morte, ‘deram um rolê’ juntas durante a quarentena (e nem foram multadas pela bagunça que fizeram), e o ser humano se deparou de frente com a natureza em possível “aniquilação”, e também de sua realidade, de sua rotina, de suas ilusões ou de seus sonhos em cheque. De certa maneira, a Covid-19 nos proporcionou um lugar diante dessa face enigmática do amor quando próximo a possibilidade da morte, seja ela qual for: da vida, de uma fase, de um negócio falido, de uma doença, de uma perda qualquer, etc, etc, etc…

Os termos “tanto” e “quanto” ficaram à frente de todos nós. A arte, assim como a psicanálise, encararam como nunca o sujeito desejante e as frustrações foram vomitadas como um surto coletivo. Em tese, muita coisa nova pode nascer, individual e/ou coletivamente, como frutos dos atravessamentos do mortífero, característica fundamental de uma pandemia. Muita coisa foi colocada na balança, descartadas ou colocadas em prioridade. A crise, imersa em paradoxos (assim como o amor), traz em si inúmeras possibilidades, várias potências. Mas as cicatrizes que tudo isso nos deixam podem ser profundas, se não cuidar, sequela-nos.

Quando passamos por experiências como a pandemia, tempo de assombro e revelação, ficamos abertos a uma sensibilidade sem fronteiras, sem proteção e, como defende Freud, quando se trata do amor, “a possibilidade da limitação da fruição aumenta a sua preciosidade” – em A Transitoriedade (1916), texto-manifesto escrito diante dos horrores da Primeira Guerra. Faça suas pesquisas sobre a temática, vacine-se você mesmo pelo entendimento.

A morte ou a sua possibilidade, traz à tona o amor inteiro, aquele que agarra seus sentidos com as unhas para colocar a cara pra fora de você. Perto da morte, o amor se “precipita”, como vapor d’água que de repente condensa na forma de granizo. A morte não só sublima o amor, mas o solidifica na forma de revelações, entregas, confissões, arrependimentos.

E, em tempos pandêmicos, esse precipitar pode significar a condensação do desejo em forma de dependência. Quando as portas do isolamento se abriram, a vida voltou e a pulsão de morte diminuiu, Eros se afrouxou, observou, calculou a parada toda e saiu a cantar, como a Giulia Be: “Não era amor, não era amor. Não sei o que era mas seja o que for, não era amor…”

 O problema é que, nisso tudo, pessoas feriram e saíram feridas. Agora temos que dá uma de construtores, nos consertar, ajudar outros a se consertarem. Não ache que foi só com você, acolha tudo isso aí, se perdoe principalmente e, deixe o ciclo continuar. O show tem sempre que continuar, e ele continua. Ainda bem, ele continua.

Mas é preciso consciência de que nada que quebra, expande ou alarga, volta ao mesmo tamanho, ou volta a ser o que era. E tá tudo bem porque é assim que tem de ser. Não nos esquecendo da eterna tensão entre Thanatos e Eros, vamos desenvolver mais responsabilidade emocional, entendeu? Seja um bom equilibrista para não cair e nem derrubar ninguém nessa corda bamba, e ao mesmo tempo tensionada, chamada vida. Do mais, a regra é:  nunca dê mancada com você mesmo, tendo sempre responsabilidade afetiva por onde sua presença, ações e palavras passarem, afetarem (isso vale para o coração alheio).

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